A moça da foto aí do lado, que parece saída de um álbum do Facebook, é a que fica no pós-banho. É Stephani Joanne Angelina Germanotta. A identidade secreta. A que sobra quando se retira a lataria, a que sai do box, a que veste uma camiseta de malha qualquer, põe uma lavanda, deita na cama, liga a TV e assiste à sua série preferida. Nem mais, nem menos verdadeira que Lady Gaga. Duas em uma.

Não é desequilibrada, não é esquizofrênica. É a sagaz, a que apostou alto, que encarou se arriscar, a marqueteira, que diz o quer, pensando bem em como vai dizer, quem quer satisfazer e quem quer desagradar. É a que resolveu se partir ao meio e tirar férias de si durante o trabalho. Ser outra.

De máscara se pode tudo. Pode-se viver em uma superexposição que beira a onipresença. Como se fala de Lady Gaga. Como se fotografa Lady Gaga. Como o que ela faz, por mínimo que seja, nem precisa ser um novo disco, um novo clipe, basta ir tomar sorvete na esquina, já vira manchete.

De máscara se pode declarar o que quiser, defender o que bem entender, colher elogios, milhões de fãs e receber ataques, zilhões de críticas pesadas.

Quem está no topo da cadeia alimentar nunca se engane, não está imune, não há escudo invisível que o dinheiro possa comprar. Por mais que se considere acima, impenetrável, certos tiros transpassam. Se não matam, nem mutilam, eles ferem. Não é fácil ser chamada de ridícula, excessiva, lixo cultural e lá se vão as balas. Dói. Em algum momento dói.

É o preço. Ela está na crista. Paga pelo que escolheu, por sair da formatação básica, por acoplar mais acessórios, turbinar o visual, a mente, se tornar pontiaguda, polimorfa, alegórica, gritante, surpreendente.

Seja como drag queen com vagina ou rainha alien parindo uma nova raça, ela causa estranhamento, muita indignação, naqueles que acham que o mundo trafega exclusivamente em uma mão: os conservadores. Causa desprezo até nos que vivem dizendo que o mundo deve ter cruzamentos diversos, mas, no íntimo, no jogo à vera, aceitam apenas a sua direção: os “libertários”.

Duas correntes que se apresentam divergentes a princípio, mas tão semelhantes caso as passemos no coador. Ficam na borra a intolerância, a pretensão, a necessidade de diminuir para se engrandecer.

Receberam um programa pronto, que indica isto e aquilo como o bom e o certo, e isto e aquilo como o ruim e o errado. Debater jamais; rever, nem pensar.

É que as ditaduras do bom gosto e do moralismo são irmãs. Ambas ordenando o que fazer, como fazer, o que é certo, o que é errado e não admitindo questionamentos. Ou se aceita ou se é excluído.

 

Gaga cresceu, virou um transformer maquiado, poderoso, devastador, com milhões de crias que não cogitam virar órfãs tão cedo.

 

Gaga, longe de ser burra, sabe com quem buliu. Ela veio para agradar aos que não se encaixam. À geração que quer ser o que quer ser. Que quer se aceitar. Que não quer ser só um eu mesmo, mas também um ideal de mim mesmo. Que não quer prestar satisfações. E que quer aceitar o outro. Seja ele de pele azul, cabelo roxo, com toneladas de piercings, dentes de aquarela. Seja ele hétero, homo, bi, tri, multi, híbrido, assexuado.

Gaga é a revanche dos estranhos. A monstra mais influente, que emplaca todas as músicas nas paradas, que gera caras entortadas de descontentamento, mas que sobe um degrau a cada hora.

Não passa incólume, ela sabe. Sucesso também depende da artilharia contrária, ela sabe. Artilharia que hoje soa violenta, que daqui a alguns anos, décadas até, tende a virar fogo amigo, passando a convivência pacífica, virando admiração. Gaga deverá estar aposentada quando for redescoberta, reavaliada, resignificada e ressuscitada.

Quantos já não passaram por tal processo? Quantos não foram enxovalhados, linchados, e hoje são amados, tratados como incompreendidos, injustiçados, gênios que precisam de resgate?  Até os Beatles, quando começaram, foram taxados de histeria adolescente passageira, bobageira juvenil, tipo Jonas Brothers, e hoje…

Gaga vai além das músicas e figurinos esquisitos, videoclipes e links na internet. Ela é tudo somado e com espaço para o que mais vier. Uma paella multimídia, com atitude, mensagens subliminares, provocação, planejamento, visão comercial, engajamento, riscos e recreio.

É expansiva ao extremo. Dá asas ao descabido. Não cabe em si. E onde tudo cabe. Metafórica, cosplay semiótico. Barbarella e Barbie. Cindy Lauper com menos parafernália, Elke Maravilha com mais auditório.

Espontânea, mas estrategista. Nenhum tentáculo, nenhuma peruca, nenhuma lingerie, nenhum chifre, nenhum acrílico está ali à toa. É de caso pensado, para chocar, para repercutir. Causar ódio e ojeriza, assombro, adoração e afeto.

Mostra-se livre para fazer o que quer, cuidar da sua vida como bem entende. Não é bem assim. Ela se comprometeu. Stephani tem um pacto com Gaga. Gaga cresceu, virou um transformer maquiado, poderoso, devastador, com milhões de crias que não cogitam virar órfãs tão cedo. Pior (melhor): com a gaveta cheia de contratos milionários.

Não dá mais para romper com ela, largá-la, dizer que enjoou, agora quero jeans e tênis. Meio Bruce Wayne, que tem a consciência latejando pelo povo dependente do Batman para protegê-lo, meio lobisomem, que não consegue conter a metamorfose. Stephani assumiu o compromisso como que jurando sobre a Bíblia.

Gaga virou PhD na técnica e na arte de ser famosa. Teve ambição e determinação para chegar lá. Para ver o mundo transladar em volta de seu ego. Para desafiar Madonna em uma luta de highlander. Mas de fachada. Dentro do projeto. Quem disse que só pode haver uma?

Por: Miguel Rios do NE

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